quarta-feira, 18 de abril de 2012

Divina Comédia


Antero de Quental, 1887


Erguendo os braços para o céu distante
E apostrofando os deuses invisíveis,
Os homens clamam: — «Deuses impassíveis,
A quem serve o destino triunfante, 

Porque é que nos criastes? Incessante
                    Corre o tempo e só gera, inextinguíveis,
Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis,
                    N'um turbilhão cruel e delirante... 

Pois não era melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda não existe,
                    Ter ficado a dormir eternamente? 

Porque é que para a dor nos evocastes?»
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dizem: — «Homens! por que é que nos criastes?»
                   
                   *  *  *  *  *  *  *  *  *  
                                                                                    
Na Mão de Deus
Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita. 

Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depois do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita. 

Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente, 

Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente! 
 Antero de Quental, "Sonetos"

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