Mais do que um passeio cultural, a visita à Quinta da Regaleira, em Sintra, é uma viagem a um universo de símbolos e metáforas, presentes em toda a propriedade. Aqui nada é apenas o que parece, mas sempre sinal de algo mais forte, transcendente e misterioso.
Sintra foi desde sempre considerada pelos vários povos como o fim do caminho, um ponto de chegada aprazível, rico em água e terras férteis e de clima ameno. Além do mais, Sintra sempre transmitiu fortes sentimentos telúricos. A forma serpenteante que entra pelo mar, a sua proximidade com os astros (o facto de nascer abruptamente de uma planície fá-la parecer mais alta do que é) e as árvores milenares tão apreciadas pelas civilizações druídicas conferiram à serra o cariz sagrado que, na Antiguidade Clássica, serviu de inspiração para a designação de Promontório da Lua.
Neste contexto, a Quinta da Regaleira apresenta-se como o mais significativo e imponente dos monumentos simbólicos edificados em Sintra.
Um percurso gloriosoA história da Quinta da Regaleira, como ela se apresenta nos nossos dias, começa em 1892, altura em que é adquirida por António Au-gusto Carvalho Mon-teiro. O Monteiro dos Milhões, epíteto que popularizou esta misteriosa personagem, nasceu no Rio de Janeiro em 1848, filho de pais portugueses. Herdeiro de uma grande fortuna familiar, multiplicada no Brasil com o monopólio do comércio dos cafés e pedras preciosas, este homem rapidamente se tornou conhecido pela imprensa da época graças ao carácter, simultaneamente altruísta e excêntrico, que o levou a gastar uma verdadeira fortuna na realização desta fantasia.
Licenciado em Leis pela Universidade de Coimbra, Carvalho Monteiro tinha como grandes interesses os livros, a ópera, os instrumentos musicais, os relógios, as conchas, as borboletas e as antiguidades. Tinha também o desejo de construir um espaço grandioso, em que vi-vesse rodeado de todos os símbolos que espelhassem os seus interesses e as suas ideologias. Esse espaço encontrou-o em Sintra, um local que Monteiro considerava representar a essência de Portugal, uma espécie de baluarte da alma lusitana. Assim, decidiu comprar a Quinta da Regaleira (propriedade de uma rica família de comerciantes do Porto agraciados com o título de barão) por 25 contos de réis.
Cinquenta anos mais tarde, já com as características actuais, a quinta foi vendida a Waldemar D'Orey que, sem ter desvirtualizado o que tinha sido concebido com tanto método, procedeu a pequenas obras que lhe permitissem acolher a grande família que tinha. Em 1987 a Quinta da Regaleira passa a ser propriedade da empresa japonesa Aoki Corporation, entrando num pe-ríodo de dez anos de plena inactividade.
Em 1997, dois anos depois de Sintra ter sido classificada Pa-trimónio Mundial, a Câmara Municipal adquire este valioso património, iniciando pouco depois um exaustivo trabalho de recuperação do património edificado e dos jardins. Uma vez concluídas as obras, a quinta foi finalmente aberta ao público como centro de actividades culturais.
Artes, artífices e estilosMas regressemos à história da Regaleira. O arquitecto escolhido por Carvalho Monteiro para a concepção da Regaleira foi o italiano Luigi Manini, que trouxe para trabalhar consigo os mestres coimbrãos, formados na prestigiada Escola Livre das Artes e Desenho. Arquitecto, pintor e cenógrafo, Manini veio para Portugal em 1876 para trabalhar no Real Teatro de São Carlos. Tinha trabalhado no Scala de Milão e gozava de muito boa reputação no meio artístico. O seu trabalho na construção do Palácio-Hotel do Buçaco agradou especialmente a Carvalho Monteiro. Porém, não era só nas questões estéticas que Monteiro e Manini estavam de acordo, ambos partilhavam as mesmas filosofias e estas afinidades foram determinantes para o desenvolvimento do projecto de concepção da Quinta da Regaleira.
O início das obras deu-se em 1898 com a adaptação da Casa da Renascença (actual sede da Fundação CulturSintra) para residência do casal Carvalho Monteiro. Seguiu-se a remodelação das cocheiras, depois a construção da capela e, finalmente, a edificação do palácio. Durante todas estas obras, até 1910, o trabalho dos artífices de Coimbra foi exclusivamente dedicado a Carvalho Monteiro, sendo a maioria das peças artísticas trabalhada na oficina de João Machado e depois enviada para Lisboa por comboio.
Da conjugação dos sonhos de Carvalho Monteiro com as artes de Manini e dos artesãos da pedra, nasceu um edifício arquitectonicamente muito rico num misto de estilos e de grande originalidade. Traços manuelinos são visíveis na utilização de ornamentos como cordames, elementos vegetais, esferas armilares e colunelos torsos, sendo utilizados uma série de novos elementos como animais e espécies antropomórficas, símbolos esotéricos relacionados com a alquimia e a maçonaria, revelando as ideias e convicções de Carvalho Monteiro.
O grande mentor da Regaleira era um homem conservador, monárquico e cristão gnóstico e, como tal, adepto de uma arte simbólica, com o objectivo de ressuscitar o passado. A predominância do estilo neomanuelino e a recorrência a elementos do sobrenatural e do sagrado não é mais do que o assumir a nostalgia dos tempos gloriosos e ricos dos descobrimentos. Neste mesmo contexto, a Arte Gótica é escolhida como a mais representativa da Quinta. Baseada na repetição de linhas geométricas e na forma ogival das abóbadas e dos arcos, sugere, para além dos objectos reais, os seres e animais estranhos que povoam os nossos sonhos e pesadelos. Castelos em ruínas, florestas sem saída, mansões com alas desertas e corredores escuros, criptas ocultas e subterrâneos húmidos, passagens secretas e portas interditas através das quais se adivinha a presença dos espíritos, são os ingredientes es-
senciais do cenário gótico que tão bem representado está na Quinta da Regaleira.
O romantismo dos jardins e a magia do poço
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